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Sara Magalhães em entrevista

15/12/2016. Entrevista por Marta Daniela Santos.

A primeira ERC Consolidator Grant a ser atribuída em Ecologia e Evolução em Portugal vem para a investigadora cE3c Sara Magalhães. No valor de 2 milhões de euros, esta bolsa vai permitir a Sara Magalhães desenvolver o projeto COMPCON – Competition under (niche) construction durante os próximos 5 anos, para estudar um problema fundamental em Ecologia e Evolução: como é que a competição entre organismos molda a evolução das espécies?

Nesta entrevista, Sara Magalhães fala sobre este projeto, como surgiu a ideia e o processo de candidatura à ERC.

 

Quais são os problemas que pretendes explorar com este projeto? 

O projeto insere-se na área da Ecologia e Evolução, em que eu trabalho, e lida com uma interação extremamente importante: a competição. A competição pode ser por um recurso qualquer - por um parceiro sexual, por comida, etc - e está na base da maioria das cadeias tróficas e dos ecossistemas que nós conhecemos.

Como a competição está na base da evolução, nós achamos que a percebemos. O que eu tentei argumentar é que isso é mentira. É mentira sobretudo porque desde há cerca de 20 anos que nos estamos a aperceber que a Ecologia e a Evolução operam à mesma escala temporal, e isso altera a forma de olharmos para as interações. 

Isto é especialmente importante para a competição. Os competidores podem interagir diretamente uns com os outros, mas em geral trata-se de uma interação indireta, através do recurso pelo qual competem. Por um lado os competidores modificam o recurso ao alimentarem-se dele. Por outro lado os competidores têm ainda a capacidade de modificar o recurso para o seu próprio benefício: podem monopolizá-lo, ou torná-lo melhor de alguma forma. Em Ecologia, chama-se a isto construção do nicho.

A construção do nicho também modifica as pressões de seleção sobre os organismos, que por sua vez se modificam e modificam o ambiente; portanto, o feedback entre a Ecologia e a Evolução está muito presente neste conceito. Para além disso, a competição pode gerar alterações no tipo de recurso que se consome – o próprio tamanho do nicho também pode evoluir. Não só os organismos modificam o recurso para seu próprio benefício, como o podem utilizar de maneiras diferentes: no caso dos ácaros, podem passar a alimentar-se da planta do tomate apenas nas folhas mais de cima ou nas folhas mais de baixo, por exemplo. Ou seja, o nicho pode aumentar (ser capaz de se alimentar de todas as folhas) ou diminuir (alimentar-se apenas de folhas que estão mais em cima ou em baixo). 

Nós vamos manipular o nicho no nosso sistema de uma forma muito quantitativa: dando cádmio às plantas. Nós descobrimos - o que só por si já é bastante interessante - que a performance dos ácaros depende do nível de cádmio que damos às plantas. E depende de uma forma não linear: se damos um bocadinho de cádmio a performance dos ácaros aumenta, até um máximo. E depois, se damos mais, a performance diminui. Não fazemos ideia porque é que isto acontece: não sabemos e ninguém sabe! E só o tentar perceber isto do ponto de vista fisiológico é muito interessante. 

Assim, a ideia é avaliar o impacto do tamanho do nicho, e da capacidade de competir, tanto na coexistência das espécies como na sua evolução.

Vais utilizar duas espécies de ácaro e a planta do tomate - como funciona este sistema e o que é que o torna ideal para o estudo que vais fazer? 

Existem duas espécies de ácaros-aranha que co-ocorrem em tomate - Tetranychus urticae e Tetranychus ludeni. Estes ácaros têm uma particularidade: quando atacam a planta, alteram as suas defesas de formas opostas.

Os ácaros T. urticae fazem o que a maior parte dos herbívoros faz: activam as defesas da planta do tomate quando a atacam, o que os faz ter uma performance pior. Por outro lado, os ácaros T. ludeni têm digamos que um truque: em vez de activarem as defesas da planta, silenciam-nas. Ou seja, a planta tem menos defesas na presença dos ácaros T. ludeni do que na sua ausência. Isto é estranhíssimo! E é também maravilhoso para estes ácaros, pois a sua fecundidade é maior nas plantas que eles próprios atacam. Só que os seus competidores, os ácaros T. urticae, também podem tirar partido desta diminuição das defesas. Cá está o conceito de construção do nicho: uma espécie está a melhorar o ambiente para seu próprio benefício - e qualquer um pode usar esse melhoramento. 

Para testar especificamente o papel da construção do nicho, vamos utilizar um mutante da planta do tomate, em tudo igual à planta do tomate excepto num aspecto: as suas defesas não são nem induzidas nem silenciadas na presença destes ácaros. Isto permite-nos estudar dois ambientes: um em que há construção do nicho, e outro em que a construção do nicho não pode acontecer. Como é que se dá a evolução nestes dois ambientes? 

Portanto, estes resultados vão ter bastante importância para várias áreas? 

Claro. A ideia é utilizar este estudo como uma base para depois formularmos hipóteses, que podemos testar em estudos comparativos. Por exemplo: há muitas plantas que modificam o solo onde ocorrem, e isso vai modificar toda a comunidade. Esses sistemas são bons para fazer estudos comparativos, mas a sua complexidade não permite fazer estudos manipulativos como o que vamos fazer neste projeto. 

A ideia é que nós, com o nosso sistema, podemos gerar previsões que podem depois ser utilizadas como comparação quando vamos para o campo observar sistemas em que há mais ou menos construção do nicho, verificar se encontramos os mesmos padrões que encontrámos no laboratório, etc. 

E como é que surgiu a ideia para este projecto? 

A ideia surgiu primeiro com esta história do cádmio. Inicialmente queríamos perceber como é que estes ácaros, com estas diferenças em activar e silenciar as defesas da planta, se adaptam a plantas com e sem cádmio. A Cristina Branquinho já trabalhava com plantas que acumulam metais há muito tempo e achamos interessante colocar herbívoros na equação e perceber o que acontece. Submetemos um projeto FCT, mas não foi financiado. Depois, decidimos expandir um pouco esta ideia: pegar noutras características do sistema e desmontar todas as interações que eram precisas para no fundo conseguirmos perceber como funciona a competição. 

Foram dois meses em que me dediquei só a este projeto, primeiro do ponto de vista teórico e depois do ponto de vista prático, e em que conversei com muitas pessoas de áreas diferentes. Não foi uma coisa que só surgiu da minha própria cabeça.

Era exactamente isso que eu ia perguntar: quanto tempo levaste a preparar a candidatura? 

A proposta em si é muito fácil, mais fácil que os projetos FCT. O que é complicado é ter a ideia mesmo solidificada. Acho que muita gente despreza um pouco esta parte, mas eu acho que pensar bem na ideia é essencial. 

E como é o processo, as várias fases depois de submeter a proposta? 

Eu submeti a proposta em fevereiro de 2016, e em junho soube que ia a entrevista - que foi agora em outubro. Não há muitas pessoas que se candidatam, na realidade: na área de Ecologia e Evolução são cento e tal candidatos. Depois, 20% a 30% são seleccionados para ir à fase da entrevista, e nessa fase já se tem 50% de hipóteses de ter a bolsa. Passei um mês só a preparar aqueles minutos da entrevista... 

Como é que é a entrevista? 

São 10 minutos de apresentação. E o meu projeto é complicado, não é propriamente fácil de explicar em tão pouco tempo. Tenho de explicar de onde é que venho, porque é que tive esta ideia, porque é que a ideia é importante, mais ou menos o que vamos fazer, e perspectivas para o futuro - tudo em 10 minutos. 

O que eu fiz foi preparar a apresentação e fazê-la a toda a gente que achei que tinha espírito crítico e capacidade de me deitar abaixo se fosse preciso. Não só investigadores: também apresentei a um amigo meu que faz filmes, e a outros que é jornalista, para ter também uma ideia de quem está de fora. Depois há 15 minutos de perguntas, e também pedi aos meus amigos investigadores a quem fiz a apresentação para me fazerem perguntas, para ver se eu conseguia responder. 

Na realidade, sinceramente, não estava tão nervosa como estava à espera. Como também já tinha feito a apresentação tantas vezes, e a pessoas que sei que são muito críticas, sabia que já tinha recebido as perguntas mais críticas. E de facto quando lá cheguei achei aquilo bastante fácil. Eles [os membros do painel] também eram muito simpáticos: acho que depende um pouco dos painéis, mas estes eram muito simpáticos. 

E porque é que decidiste candidatar-te agora? 

Porque não tinha dinheiro no meu laboratório. Porque tinha concorrido a 11 projetos FCT e não tinha conseguido nenhum. 

Não era o último ano em que me podia candidatar à Consolidator Grant, nem sequer sentia que tinha a ideia completamente presente na minha cabeça...foram precisos esses dois meses para eu ter a ideia presente. Trabalhei desalmadamente nesses dois meses, pensei em desistir montes de vezes porque não me sentia preparada. 

A altura foi única e exclusivamente determinada pelo facto de, se eu não tiver financiamento para daqui a um ano, o meu laboratório acaba, porque eu preciso de ter pelo menos uma técnica para me cultivar as plantas, os ácaros, e me manter o laboratório. Eu senti que era muito injusto para com os meus estudantes se eu não me candidatasse. Foi por isso, não foi porque tivesse muita vontade de me lançar neste processo. Até gostei da experiência e achei-a muito importante para solidificar ideias, mas realmente não tinha vontade nenhuma. 

Acho que é assustador pensar que noutros países há um sistema muito bem feito para preparar os investigadores, e os investigadores têm muito mais recursos, e mesmo assim nós conseguimos chegar a combater com os melhores da Europa. Acho que se devia pensar nisso em termos de ciência em Portugal. Infelizmente isto está cada vez pior. Por exemplo, a FCT não abre concursos para projetos há dois anos. Eu não estou a dizer que agora toda a gente vai viver à conta da ERC, mas as pessoas têm de ir buscar a algum lado, isto é desesperante. E não é assim nos outros países. Isso é uma grande tristeza que eu tenho. Se houver uma tristeza de estar em Portugal, é essa. 

Voltando agora ao projeto, e para concluir: quais são as tuas expetativas para os próximos 5 anos? 

Para já, vou passar imenso tempo a construir um laboratório. Nós temos literalmente todas as nossas populações num barracão no átrio do 1º piso; portanto, primeiro vou ter de transformar o meu laboratório num laboratório do século XXI. 

Só vou ter resultados palpáveis passados cerca de 3 anos. Mas em princípio depois vêm os resultados todos de uma vez, portanto acho que vai ser maravilhoso. Eu não sei que resultados vão ser, mas alguma coisa vai sair dali. É muito pouco arriscado neste sentido: qualquer coisa que saia é interessante e interpretável - daí a solidez da candidatura. Para qualquer direção que olhemos podemos ter uma interpretação para os resultados, e há muitas perguntas que nós vamos fazer, todas elas interligadas


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