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Das aranhas à Inteligência Artificial: Pedro Cardoso em entrevista ao cE3c

29/09/2016. Entrevista por Marta Daniela Santos

NOTE: the english version of the interview is available here.

Grande parte das pessoas tem medo de aranhas, ou pelo menos não faz questão de ter um encontro imediato com elas. Mas este não é o caso de Pedro Cardoso (Museu Finlandês de História Natural; cE3c), que já há vários anos trabalha em aracnídeos – ou, nas suas palavras, “aranhas e mais alguma coisa”.

Recentemente começou também a dedicar-se a uma nova e surpreendente área de investigação: a aplicação da Inteligência Artificial à Ecologia. A motivação, essa, tem sido sempre a mesma: trabalhar em algo diferente, em que mais ninguém estivesse a trabalhar.

Porquê as aranhas como objeto de estudo?

Foi quase...por acaso. Durante o curso não sabia em que grupo [de organismos] queria pegar, mas sabia que não queria fazer o mesmo que toda a gente. Ir para aves, por exemplo, seria seguir a manada, ou ir para mamíferos e fazer aqueles trabalhos normais sobre a dieta da lontra: naquela altura havia pelo menos 3 ou 4 estágios cada ano sobre a dieta da lontra.

Eu sabia que queria fazer alguma coisa diferente de toda a gente. E as aranhas não eram estudadas desde os anos 1940 em Portugal - pelo Professor [António de] Barros Machado, o último aracnólogo português. Ele acabou por ser convidado a sair pelo regime da altura, sendo anti-regime foi expulso para Angola. Portanto, há mais de 50 anos que ninguém fazia nada com aranhas em Portugal. Acabei por ir por aí porque vi que havia muito por fazer e achei que ia fazer uma coisa que ninguém estava a abordar em Portugal.

E depois continuou.

E depois continuei, sim. Descobri que as aranhas são um excelente objeto de estudo, têm muitas vantagens em relação a outros organismos...

Vantagens em que sentido?

São relativamente fáceis de identificar, comparando com outros grupos diversos como coleópteros ou dípteros. São também relativamente fáceis de coletar no campo. Sendo predadores têm muitas adaptações únicas, a mais notável das quais o uso de teias. São fascinantes e permitem-nos abordar algumas questões que não se conseguem abordar com nenhuns outros organismos. Por isso acabaram por ser o objeto de estudo ideal e ainda hoje continuam a sê-lo.

Atualmente o seu interesse pelas aranhas integra um trabalho mais geral que tem desenvolvido sobre a conservação dos invertebrados. Quais são os obstáculos à sua conservação?

Para já - estou tão habituado a falar nestas coisas em inglês que nem sei como traduzir para português - temos o obstáculo político: os políticos podem até saber o que é uma ave ou um mamífero, mas um invertebrado, um inseto...é uma coisa para matar. No caso do público, muitas vezes infelizmente é um obstáculo puramente cultural: as pessoas têm medo das aranhas, ou acham que os insetos são pragas, que não servem para mais nada. Não se apercebem da diversidade que há e da sua importância.

Depois, temos também o próprio obstáculo criado pelos cientistas. Afinal de contas são os cientistas que decidem para onde vai o dinheiro [para a investigação] e são eles que decidem que o dinheiro deve ir todo para os vertebrados. Há muita falta de cultura no meio científico; por incrível que pareça, é um dos maiores obstáculos.

E depois há, claro, todos aqueles [obstáculos] que são inerentes à falta de conhecimento. Nós não temos sequer uma ideia de quantas espécies existem a nível global. Nem sequer em Portugal: não temos uma mais leve ideia de quantas espécies existem de invertebrados. A nível global, diz-se que é qualquer coisa entre 3 e 30 milhões. [risos] É uma ordem de magnitude, não é?

Exacto! [Risos] Eu li uma estimativa que os invertebrados constituem cerca de 97% dos animais, para mim foi uma surpresa.

Sim, sim. Em Portugal, por exemplo, não fazemos a mínima ideia de quantas espécies existem de insectos. Temos uma vaga ideia daquilo que já foi visto, mas a verdade é que mesmo em Portugal conseguimos encontrar uma nova espécie de aranha, que são as que eu conheço melhor, em uma hora. Não é uma nova espécie para Portugal, é uma nova espécie para a ciência!

A sério?

Numa hora, sim. Uma pessoa que saiba o que está a fazer consegue encontrar uma nova espécie para a ciência numa hora. Por isso, quando estamos a falar de políticas de conservação de espécies, na verdade estamos a falar no vazio.

É todo um mundo por explorar...

Não temos dados. Esse é o primeiro obstáculo, nem sequer sabemos que espécies temos. O segundo obstáculo é que mesmo aquelas que já são conhecidas...não sabemos onde é que existem. Em muitas espécies há um único registo e nunca mais foi vista - mas também nunca mais foi procurada [risos]. Depois, também não sabemos qual é a sensibilidade delas às alterações nos habitats. Para algumas espécies que já foram estudadas tem-se uma ideia bastante boa. Um exemplo são os Açores, que em Portugal é a região melhor estudada, de muito longe, e muito graças ao esforço do Paulo Borges. Mas a nível global não sabemos quais são sensíveis às alterações de habitat ou seja ao que for. E também não sabemos como é que as populações flutuam no tempo e no espaço. Se nem sequer sabemos onde é que elas existem, muito menos sabemos como são as flutuações naturais das populações.

Como parte do seu trabalho propõe alterações aos critérios adoptados para a elaboração da Lista Vermelha da IUCN [União Internacional para a Conservação da Natureza], para que seja possível aplicá-los aos invertebrados. Havendo tanto ainda por explorar sobre os invertebrados...em que sentido iriam estas alterações?

Quatro dos cinco critérios da IUCN são baseados em número de indivíduos de uma espécie, das suas populações. E nós nunca temos esses dados para os invertebrados. Então, muitas das alterações que estamos a propôr vão no sentido de usar as áreas de distribuição e tentar com isso criar critérios alternativos que correspondam mais ou menos aos mesmos em termos de efectivo populacional, de forma a podermos classificar as nossas espécies com os dados que temos.

Pode dar um exemplo?

Por exemplo, um dos critérios diz que uma espécie é classificada como criticamente em perigo de extinção se o efectivo populacional tiver decrescido em 80% ou 90% (depende depois de outros factores) nos últimos 10 anos ou 3 gerações. Mas nós nunca temos esses dados. Então a ideia é usar dados de decréscimo do habitat como alternativa. O decréscimo da área de habitat nunca será esses 80% ou 90%, há teoria que diz que na verdade para perder 80% ou 90% do efectivo basta perder...vou inventar números, porque ainda não sabemos, mas basta perder por exemplo 50% a 60% da área de habitat. São estes novos números adaptados que nós estamos a tentar descobrir.

Primeiro as aranhas. Depois os invertebrados. Agora, mais recentemente, surgiu a Inteligência Artificial. Como surgiu o interesse por esta área, e como é que se pode aliar a Inteligência Artificial à Ecologia?

Mais uma vez, o interesse surgiu pelo facto de ninguém estar a trabalhar nisso. [risos]

...é um bom motivo para começar! [risos]

Os sistemas ecológicos são extremamente complexos. Os sistemas físicos já são complexos; mesmo assim conseguimos chegar a leis que nos permitem fazer predições para o futuro. Claro que depois há sistemas caóticos, como por exemplo os estudados pela meteorologia, mas de qualquer das maneiras já temos formas de “prever” o futuro. Para os sistemas ecológicos ainda não, estamos muito longe disso. Há demasiadas variáveis e interações a ter em conta. Estamos a falar normalmente de centenas ou milhares de espécies a interagir, a trocar energia de diferentes formas... É um sistema complexo por excelência, levado ao extremo. Por isso é que não conseguimos muitas vezes compreender estes sistemas. Por outro lado não conseguimos prever o futuro: não conseguimos prever como é que as espécies se vão comportar se destruirmos uma determinada mancha de floresta, por exemplo. Não só temos poucos dados, como não temos as ferramentas necessárias para os analisar.

A Inteligência Artificial vem precisamente automatizar este processo. A parte em que eu estou a trabalhar tenciona pegar em dados e fazer sentido deles sem que seja necessário dar nenhum input em particular. Ou seja: normalmente o que nós fazemos é pegar em determinados dados, às vezes temos uma ideia de que esta e aquela variável são as mais importantes e esquecemos todas as outras, e fazemos umas regressões lineares, umas coisas muito simples. Mas a natureza não é linear nem nada que se pareça. O que esta vertente da Inteligência Artificial - a programação genética - faz é tentar descobrir que tipo de relação existe entre as diferentes variáveis, evoluindo a própria forma das relações a partir dos dados. A programação genética permite descobrir quais são as formas e parâmetros das relações que melhor se ajustam aos dados. A nossa tarefa é ver se esse resultado faz sentido.

Isso deve exigir um grande poder computacional...

Sim, bastante, o ideal é ter sempre um cluster. Esta é uma área muito nova, eu fui o primeiro a propôr o uso deste tipo de métodos em ecologia, de forma que ainda a estou a desenvolver. Ainda por cima como isto é muito novo não é aceite pelos ecologistas, pelo que estou a fazer isto sem financiamento.

E para terminar: na sua opinião quais podem ser as consequências, boas e...menos boas, de introduzir a Inteligência Artificial não só em Ecologia mas em todo o tipo de tarefas, de qualquer área?

É uma boa pergunta, que ainda não está respondida para nenhuma área. Tudo indica que em 15 a 20 anos vamos ter computadores com capacidade igual à de um ser humano, incluindo em coisas que nós pensamos serem um exclusivo nosso, como a intuição. Já há inclusive o caso de um computador que cria e testa hipóteses sozinho executando algumas experiências de bioquímica. Por isso, daí até começar a escrever projetos e artigos...estamos a falar de 10 a 20 anos.

Já há gente - inclusive Stephen Hawking e Elon Musk, por exemplo - que começa a alertar para os perigos e a afirmar que é preciso criar regulamentos para aquilo que se pode fazer com a Inteligência Artificial. A Google tem uma rede neuronal das mais avançadas que faz por exemplo o reconhecimento automático das fotografias entre muitas outras funções a que não temos acesso. A eficiência dessa rede já está muito próxima da eficiência de um humano nesta tarefa específica, e a Google está inclusivamente a criar uma espécie de botão de emergência para parar a rede neuronal se alguma coisa correr mal.

Aliás, neste último ano têm surgido muitíssimas publicações sobre o perigo da Inteligência Artificial. Para já o receio mais forte é que venha a substituir 50% a 70% dos empregos actualmente existentes. Mas não será assim tão cedo, eu diria que demora ainda 20 a 30 anos até que os sistemas mais avançados consigam superar um humano.

 

Pedro Cardoso foi orador plenário do congresso internacional Island Biology 2016, organizado pelo Grupo de Biodiversidade dos Açores - cE3c.


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