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Mudam os climas, mudam as paisagens: atualizam-se coleções, produz-se ciência

26/12/2018. Texto de Raquel Barata. Fotografias de César Garcia.

Para que servem as coleções científicas? As respostas a esta questão muitas vezes referem a preservação de uma memória, estando os objetos associados à ideia de “coisas antigas” que servem para educação e fruição. No entanto, as coleções científicas não se limitam a incluir objetos a que se limpa o pó numa prateleira de Museu e são determinantes para a produção de ciência em muitas áreas, permitindo a identificação de padrões de mudança.

As coleções são mantidas por curadores que as atualizam e investigam, zelam pela sua conservação e sobre elas comunicam, com pares ou com a sociedade, para que a sua importância seja reconhecida e valorizada. Na História Natural a relevância das coleções é inerente à conservação das espécies na natureza e são coleções como as dos Herbários, dos Bancos de Sementes ou dos Jardins Botânicos que suportam a identificação de espécies novas para a ciência, a preservação de espécies em risco e o estudo da evolução da flora de áreas a preservar para salvaguarda dos ecossistemas e da biodiversidade que encerram.

Nos dias de hoje, em que as alterações climáticas globais são um facto, as coleções de história natural assumem um papel preponderante na investigação sobre consequências e futuras estratégias de adaptação. Os investigadores do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) que colaboram com o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Jardim Botânico de Lisboa/Jardim Botânico Tropical - Universidade de Lisboa) realizaram uma campanha de campo na Paisagem Protegida da Serra do Açor, dada a relevante diversidade que inclui e por ter sido estudada pela instituição ao longo das décadas, existindo muitos espécimes em herbário, antes e após incêndio.

A equipa integrou curadores de diferentes grupos taxonómicos e a responsável pelo serviço educativo, sendo o objetivo principal o reconhecimento e estudo dos padrões de distribuição das diferentes espécies no local e analisar o efeito do incêndio de outubro de 2017 nas espécies que eram conhecidas anteriormente no local. Comparou-se, assim, uma zona ardida com uma zona não ardida, cujo estudo tinha sido efetuado em 1985, com a colaboração de membros da mesma equipa e em 1989, depois de um grande incêndio que também ali ocorreu em 1987.

A recolha de exemplares para as coleções de herbário de plantas vasculares, briófitos (musgos, hepáticas e antocerotas), líquenes e fungos decompositores de madeira foi devidamente programada e realizada para atualização e enriquecimento das coleções. Retiraram-se coordenadas, determinou-se a ecologia de cada espécime, confirmou-se a altitude e foi elaborado o reconhecimento das espécies presentes, tanto na zona ardida como na zona não ardida.

Na zona de mata ardida algumas das espécies que anteriormente teriam existido foram destruídas pelo fogo ou lixiviadas pelas águas e pela erosão, encontrando-se agora as pioneiras da sucessão ecológica. Como esperado, foi detetada uma maior diversidade de fungos, briófitos e líquenes na zona da mata onde a manta morta se acumula em maior quantidade e diversidade. Grande parte dos fungos que decompõem a madeira, alguns com cores e formas impressionantes, forma pequenas crostas envolvendo ramos caídos. Calcula-se a existência de cerca de 800 espécies em Portugal, impossíveis de identificar a olho nu e por isso são colhidos pedaços de madeira já caídos com os exemplares mais interessantes e levam-se para identificação do fungo ao microscópio e conservação em herbário.

Há briófitos e líquenes que só crescem nos troncos de determinadas plantas: uma mata com diversidade de espécies nativas, mais resistentes ao fogo do que os eucaliptos ou pinheiros, apresenta, obrigatoriamente, uma maior diversidade nestes grupos. São também estes organismos e suas associações, os responsáveis por criar um ambiente húmido na mata autóctone que torna mais difícil a entrada e progressão do fogo.

A diferença na diversidade de briófitos e líquenes entre as duas áreas estudadas foi de facto notória: enquanto a área ardida de antigos pinhais e eucaliptais é dominada maioritariamente por Funaria hygrometrica, uma espécie pioneira conhecida vulgarmente por “musgo do fogo”, na zona não ardida de mata autóctone podem listar-se cerca de quatro dezenas de espécies. Estas são, ainda, bioindicadoras de qualidade e continuidade ambiental, o que demonstra a reduzida poluição e a estabilidade das condições ambientais dessa zona, apesar de algumas espécies serem identificadas agora com menor frequência e cobertura quando comparado o estudo anterior.

Quanto às plantas vasculares, a diferença de diversidade entre a área ardida e não ardida é igualmente clara. São ouvidos os relatos de quem nunca mais poderá esquecer o inferno que por ali passou e, no terreno, o desenho da mancha negra atesta a resistência da biodiversidade nativa: a linha de fogo que queimou pinhais e eucaliptais, rodeando aldeias inteiras salvas pela população, termina na orla da mata autóctone onde carvalhos, azereiros, medronheiros, castanheiros, azevinhos, aveleiras, tojos, urzes, rosmaninhos e um tapete muito diversificado de briófitos, líquenes e fungos limitaram a progressão do fogo.

O plano para replantação da zona atingida na área protegida, com plantas originárias de sementes da mata da Margaraça, já está a ser desenhado pelas entidades competentes. Esperemos que na envolvente não se repita o erro da plantação desordenada de florestas de produção e que a remoção do que lá está seja breve: agora que o fogo passou já se podem observar os eucaliptos a germinar em força, ou não fossem espécies que na sua terra natal, na Austrália, dependem do regime dos fogos naturais para a reprodução.

As coleções do Museu ficaram sem dúvida mais ricas após esta campanha de campo. As amostras, cuja colheita foi devidamente autorizada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, estão a ser identificadas e devidamente tratadas para inclusão nos respetivos herbários. Servem agora como material de referência para as áreas consideradas, atestando a sua presença neste final de 2018. O estudo pode agora continuar, as coleções assim o permitem…

Apoio financeiro: cE3c Unit funding UID/BIA/00329/2013.

Créditos fotográficos: César Garcia.

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